Vê Legentil

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

 

Moda Inclusiva e Inclusão de Pessoas com Deficiência

(artigo publicado na revista “Um olhar diferente sobre a Moda – 3ª edição/2024)

 

Antes de falar em moda inclusiva, faz-se necessário um retrospecto histórico sobre a pessoa com deficiência na sociedade, como ela era vista, qual tratamento lhe era dado? Historicamente, a pessoa com deficiência sempre foi marginalizada pela sociedade. Em um panorama mundial e não se prolongando a tempos tão longínquos da história, para falar sobre pessoa com deficiência, podemos citar o período da Segunda Grande Guerra Mundial. Muitos artigos, reportagens, publicações diversas nos trouxeram conhecimento a respeito dos horrores praticados neste período liderado por Hitler e sua ideologia nazista, e a sua obsessão por uma raça pura. E para conquistar seu objetivo o líder nazista austríaco foi capaz de cometer e permitir atrocidades com aqueles que não se enquadravam no perfil de alguém que pudesse dar continuidade a uma linhagem perfeita, assim idealizada por ele. Pertencente ao grupo dos excluídos estavam judeus, pessoas com deficiências físicas e mentais, intelectuais, (judeus ou não); surdos e aqueles que os médicos acreditavam que pudesses transmitir de forma hereditária alguma “anomalia” que pudesse impedir a raça ariana de ser perfeita.

As Barbáries da II Guerra e a Pessoa com Deficiência

Pessoas que tinham tais características eram exterminadas através de um programa criado pelo nazismo chamado “Action T4” ou simplesmente T4. O programa na verdade começou antes da guerra, em 1º de setembro de 1939. Dados históricos informam que no início, os médicos e enfermeiros foram “encorajados” a negligenciar os pacientes classificados como incuráveis, assim muitos deles morreram de fome ou por outras doenças e infecções. Mais tarde, grupos de consultores do governo iam aos hospitais e decidiam quem viveria e quem deveria passar pela “solução final”, expressão usada para designar morte. Os selecionados eram encaminhados a vários centros de extermínio do programa “T4 – eutanásia” e executados com injeções letais.

Em julho de 1933 Hitler assinou a “Lei para Prevenção de descentes hereditariamente doentes”, a fim de implementar suas políticas de higienização racial. A lei falava em esterilização compulsória às pessoas que eles chamavam de “doentes”, em que creditavam ser portadores de doenças hereditárias como a esquizofrenia, a epilepsia, e "imbecilidade". A esterilização também foi sugerida para outras formas de desvio social, além da surdez e cegueira. Pessoas com nanismo, gêmeos e pessoas com deficiência físicas que chamassem a atenção dos médicos eram selecionados para experiências genéticas e morriam em consequência da brutalidade dos testes de laboratório.

Josef Mengele Formado em medicina, condecorado por bravura militar. Em 1943, foi para o campo de concentração de Auschwitz como coronel-médico da tropa de elite nazista. Mandou executar milhares de prisioneiros, entre judeus, idosos e pessoas com deficiência física. Os que não eram executados imediatamente eram conduzidos para ficar como cobaias humanas de seus experimentos.

A Pessoa com deficiência no Brasil

A história do Brasil sempre foi transmitida aos brasileiros, como uma espécie de Conto de Fadas ou algo semelhante. Em que seus personagens são tidos como verdadeiros mártires, heróis, com quadros que relatam sua história de uma maneira tão gloriosa e perfeita que compete aos historiadores a grande e difícil tarefa de, através dos tempos, desvendarem os verdadeiros mistérios que norteiam a história de nosso país.  Quanto mais aos relatos escritos, dados concretos referentes às pessoas com deficiências no início de nossa trajetória. Não é possível falar da história do Brasil sem mencionar os índios, habitantes naturais desta terra, de seus hábitos, costumes e cultura.

Historiadores e antropólogos através de seus estudos observaram que cada tribo indígena possuía sua crença e seus rituais religiosos, mas todos acreditavam no poder da natureza, sua influência em suas vidas no cotidiano. Esses historiadores descobriram ainda certas peculiaridades das tribos indígenas brasileiras, onde algumas delas adotavam certos comportamentos quando nascia alguma criança com algum tipo de deformidade, conforme descrito por Figueira[1] (2008):

 

“Em muitos relatos de historiadores e antropólogos, estão registradas várias práticas de exclusão entre os índios. Quando nascia uma criança com deformidades físicas era imediatamente rejeitada, acreditando-se que traria alguma maldição para a tribo, ou coisas dessa natureza. Uma das formas de se livrar delas era abandonar os recém-nascidos nas matas, ou atirá-las de montanhas e, nas mais radicais atitudes, até sacrificá-las em chamados rituais de purificação.”

Além de acreditarem que tal criança poderia trazer algum tipo de maldição à tribo, havia ainda a argumentação, de que a pessoa com alguma deficiência sofreria muito ao longo de sua vida, ou ainda que, aquele sacrifício visava o bem da coletividade.

Avançando na história, temos conhecimentos que, somente a partir do século XIX, o Brasil passa dar um pouco de atenção à essas pessoas com deficiências, entretanto, essa atenção estava voltada primeiramente aos mutilados de guerra. O Brasil, passou a investir em hospitais – escolas que atendessem e recuperassem tais pessoas, dando assistência ainda aos operários de fábricas acidentados, foi criado pelo governo brasileiro o INAR – Instituto Nacional de Reabilitação através do Decreto 27.083 de 21 de dezembro de 1956, entretanto, por falta de investimento foi instinto em 1968. Outros institutos e órgãos foram criados ainda, visando o atendimento às pessoas com deficiência, como o Imperial Instituto dos Meninos Cegos em 1854, hoje conhecido como Instituto Benjamin Constant  e o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos e 1856, atualmente denominado INES – Instituto Nacional de Educação de Surdos. A criação destes institutos, entretanto, tinha como objetivo principal dar assistência de forma paternalista, pois funcionavam como asilos, uma vez que tais crianças eram abandonadas por suas famílias e não tinham onde abrigar-se.

No Brasil, as pessoas tidas como diferentes eram excluídas, e internadas nos asilos que foi um marco da exclusão social. Após o período conhecido como asilismo, outro tipo de tratamento dado às pessoas com deficiência, se destacou no país, o assistencialismo, em que esta parcela da população era reconhecida por suas necessidades, entretanto, estigmatizada por suas dificuldades e impossibilidades. Piedade e proteção eram palavras associadas às pessoas com deficiência.

No Brasil República com o Decreto-lei nº 7.870, de 15 de outubro de 1927, tornou-se obrigatório que crianças com deficiência física e mental frequentassem escolas do ensino primário para crianças de 7 aos 14 anos, o que poderia ser estendido até os 16 anos, caso esta não houvesse concluído o ensino primário até os 14 anos.

No ano de 1975 foi proclamada pela Assembleia Geral da ONU a “Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes”, e, 1981 foi aprovado como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. A partir de então, não só a sociedade em geral passou a perceber e respeitar a pessoa com deficiência, como principalmente a pessoa com deficiência começou a ter consciência de si própria, passando então a organizarem-se em grupos, associações etc.

A Inclusão Pessoa com Deficiência e a Moda Inclusiva

          Hoje no Brasil temos a Lei Brasileira de Inclusão que garante às pessoas com deficiência seus direitos enquanto cidadão, enquanto pessoa, como merecedora de tratamento digno, igualitário e equitativo. Após 16 anos tramitando no congresso nacional, o estatuto foi aprovado, nos assegurando diante de uma sociedade excludente e padronizada pela busca da “perfeição” onde as pessoas são avaliadas pelo formato de seus corpos e comportamentos ditos normais, onde era impensável uma pessoa com deficiência ser protagonista de sua própria vida. Vivermos e fazermos nossas próprias escolhas em qualquer espaço que desejamos estar e/ou ocupar.

          A imagem que se tinha da pessoa com deficiência era sempre de vítima, de coitadinho, de quem sempre necessitava de cuidados ou assistência. Não se pensava por exemplo, no caso de cadeirantes, poderia ter seu próprio estilo de se vestir, se arrumar. Sua cadeira de rodas, bastava ser funcional, pois, o que importava era a locomoção, a cadeira, poderia ser comparada até a um uniforme, todas iguais, em medidas, tamanhos. Não se tinha a ideia da cadeira de rodas, como parte integrante, como uma extensão do corpo do cadeirante. Era considerado um objeto de locomoção. Mas você pode estar pensando, o que uma cadeira de rodas tem a ver com moda inclusiva? Tem tudo, hoje em dia, o cadeirante pode comprar sua cadeira conforme seu gosto, seu estilo, pode mandar personalizar, colorir, e o mais importante, ser comprada com medidas da cadeira, que lhe tragam maior segurança e autonomia. E o aspecto, o visual da cadeira também é uma quebra de paradigmas, onde o cadeirante deixa de chamar a atenção por sua deficiência, mas por sua forma de vestir-se e pelo aspecto, modelo, visual de sua cadeira. Eu, como cadeirante, pude levar para minhas cadeiras um pouco da minha personalidade, uma é vermelha com as calotas dos vingadores (meu lado nerd) e a outra personalizada com rosas e pintada com minha cor preferida o lilás. Tomar esta decisão quanto as minhas cadeiras, foi importante, pois como uma pessoa que há mais de 16 anos trabalha pela inclusão da pessoa com deficiência na sociedade, trouxe para perto de mim pessoas, com olhares diferenciados, não mais com pena, mais de curiosidade, de querer saber mais sobre a cadeira “diferente” e consequentemente eu pude assim, falar sobre minhas experiências de vida, meus gostos, meu trabalho, falar sobre o universo que é a pessoa com deficiência.

          Tive através de muito trabalho, ultrapassando diversas barreiras adquirir cadeiras de rodas de acordo com meu estilo e atendendo minhas necessidades. Mas infelizmente, este equipamento, tem um custo muito alto, e quanto melhor for o material, quanto mais personalizada, individualizada, maior o seu custo, e infelizmente, a realidade de poder aquisitivo, de estar no mercado de trabalho formal, ainda é crítico para a maioria das PCDs no Brasil. De acordo com o último Censo do IBGE de 2020, O rendimento médio real habitualmente recebido pelas pessoas ocupadas com deficiência foi de R$1.860,00 enquanto o rendimento das pessoas ocupadas sem deficiência era de R$ 2.690,00. Ainda de acordo com a pesquisa, Cerca de 55,0% das pessoas com deficiência que trabalhavam estavam na informalidade, enquanto para as pessoas ocupadas sem deficiência esse percentual foi de 38,7%. Tais dados, mostram que muitas pessoas com deficiência continuam a margem da sociedade, vivendo como podem e não como merecem, com dignidade.

Além da cadeira de rodas que acabava por definir a pessoa com deficiência, como um ser inferior e digno da piedade de todos, fazia e ainda pode fazer com que, muitas PCDs sofram com problemas de baixa autoestima, pois, soma-se a este princípio as roupas, feitas padronizadas, e muitas vezes desconfortáveis, não atendendo as necessidades das PCDs, dependendo das sequelas, mobilidade e autonomia desta pessoa. Uma vez que, cada pessoa com deficiência tem suas particularidades e diferentes necessidades.

Ter a possibilidade de escolher uma roupa que além de ser útil, prática, atenda seu estilo, ajuda a elevar a autoestima do cadeirante ou da pessoa que seu corpo não corresponda aos padrões normatizados pela sociedade. No Brasil, o conceito de moda inclusiva, ou mesmo o conhecimento de sua existência, podemos afirmar que está iniciando ainda, todavia, já existem marcas que produzem roupas para esta parcela da população, pois, conseguiram enxergar que além da necessidade, este público também é consumidor, ajuda a roda da economia a girar e principalmente, é cidadão integrante de uma sociedade como qualquer outra pessoa.

Tais empresas conseguiram com sua iniciativa, não apenas alcançar esta parcela da população, como ainda melhorar a imagem de sua marca, atraindo outros consumidores não PCDs. Pois, estima-se que a população em geral, tende a comprar produtos de marcas engajadas em projetos sociais, inclusão das minorias etc., o que consequentemente faz seus lucros aumentarem. No Brasil, podemos citar marcas como, A Reserva, por exemplo, que criou sua linha, a Adapt&. Que se uniram a Equal, marca pioneira no desenvolvimento de roupas inclusivas”, AR&Co, grupo que controla a grife, afirma o CEO, que são catorze modelos com aparência, modelagem e qualidade idênticas às dos produtos mais vendidos, porém com ajustes ergonômicos.

E qual diferencial das roupas da moda inclusiva e as demais peças consumidas pela sociedade? Tais peças do vestuário trazem modificações funcionais como fechos magnéticos e de velcro, costuras e zíperes laterais com abertura facilitada, mangas e punhos personalizáveis, elásticos na cintura e caimentos próprios para cadeirantes e usuários de próteses. O mercado da moda inclusiva é tão lucrativo, que de acordo com matéria publicada na revista VEJA[2], segundo a grife mencionada, pessoas com deficiência, comumente definidas pela sigla PCD, formam um público que gasta 4,8 vezes mais do que um cliente médio no e-commerce. 

Todo este caminho percorrido até o momento, nos mostra que a inclusão deve ocorrer em todos os espaços, em todas as áreas que envolvam a vida da pessoa com deficiência. Citando mais uma vez, dados do Censo IBGE 2020, no Brasil, somos cerca de 18 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência, pessoas que buscam seu lugar, seu protagonismo e para que isto aconteça, ela deve ter acesso e oportunidade de fazer suas próprias escolhas, sempre respeitando sua personalidade, seu estilo de vida e modo de se vestir, tendo suas necessidades atendidas.

É importante destacar ainda que a moda inclusiva com suas peças e suas modificações funcionais, traz também segurança ao cadeirante, pois, é imperioso, enfatizar que nem todos os lugares possuem banheiros acessíveis que atendam realmente as normas da ABNT no que diz respeito à acessibilidade. São locais muitas vezes, somente com uma metragem maior, porém com barras de apoio mal posicionadas que deixa o cadeirante em risco de queda, no momento da transferência de sua cadeira para o vaso sanitário e vice-versa, e isso é um agravante quando sua roupa não é adequada às suas necessidades, então a pessoa tem maior dificuldade ao se despir, e assim o risco de queda e ainda a sujar sua roupa.

Além do que já foi exposto no texto, é relevante mencionar ainda que apesar de incipiente no Brasil, as empresas que estão investindo na moda inclusiva, trazem á tona a discussão sobre o capacitismo, este preconceito social contra a pessoa com deficiência, que a julga como incapaz de realizar suas atividades e tarefas, de ter sua autonomia e vida de qualidade. Este capacitismo estrutural que impede as pessoas com deficiência de usufruir do pleno gozo de participar de qualquer espaço, seja pela falta de acessibilidade em todos os seus aspectos. A moda inclusiva além de funcional, ela ajuda as PCDs a saírem de um ostracismo ao protagonismo de suas próprias histórias. É ainda, como dito no início desta matéria, um direito garantido por lei. Cito, como exemplo, o Art. 4º, capítulo II, da LBI[3] onde afirma que “Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.”

Percebendo a inclusão como uma atitude que envolve acesso à educação, à diversão, à arte, ao mercado de trabalho e para este último, a aparência é sim, um fator de impacto na contratação, principalmente às pessoas com deficiências, que além de terem sua capacidade de trabalho questionada, seu aspecto, suas roupas também poderão enternecer na decisão do contratante, do empregador.

Então, falar de moda inclusiva é falar sobre inclusão em todos os aspectos, principalmente aqueles que a população sem deficiência, ainda não tem um olhar mais sensível. É mostrar que a pessoa com deficiência é antes de mais nada uma pessoa, que como qualquer outra tem suas especificidades, suas complexidades, gostos e estilo. Existe uma frase atribuída à Verna Myers[4] que diz “Diversidade é convidar para a festa; inclusão é chamar pra dançar.”, então como ir ao baile e mais ainda, como dançar sem roupas apropriadas.

 







Fontes:

FIGUEIRA, Emílio. Caminhando em Silêncio. Editora GIZ, 2ª edição, 2009.

https://super.abril.com.br/historia/o-medico-josef-mengele-anjo-da-morte/

https://operamundi.uol.com.br/noticia/23429/hoje-na-historia-1941-hitler-e-denunciado-por-programa-de-exterminio-de-deficientes-fisicos-e-mentais

https://www.dw.com/pt-br/1939-programa-nazista-de-exterm%C3%ADnio/a-319271

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/the-murder-of-the-handicapped

https://veja.abril.com.br/comportamento/inclusao-fashion-brasil-avanca-na-moda-para-pessoas-com-deficiencias

https://nada.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/0a9afaed04d79830f73a16136dba23b9.pdf

 



[1] Caminhando em Silêncio. Editora GIZ, página 22

[2] Revista Veja versão digital de 14 de agosto de 2022.

[3] Lei Brasileira de Inclusão - LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015.

[4] VP de estratégia de Inclusão da Netflix