Moda Inclusiva e Inclusão
de Pessoas com Deficiência
(artigo publicado na
revista “Um olhar diferente sobre a Moda – 3ª edição/2024)
Antes de falar em moda inclusiva, faz-se necessário um retrospecto
histórico sobre a pessoa com deficiência na sociedade, como ela era vista, qual
tratamento lhe era dado? Historicamente, a pessoa com deficiência sempre foi
marginalizada pela sociedade. Em um panorama mundial e não se prolongando a
tempos tão longínquos da história, para falar sobre pessoa com deficiência,
podemos citar o período da Segunda Grande Guerra Mundial. Muitos artigos,
reportagens, publicações diversas nos trouxeram conhecimento a respeito dos
horrores praticados neste período liderado por Hitler e sua ideologia nazista,
e a sua obsessão por uma raça pura. E para conquistar seu objetivo o líder
nazista austríaco foi capaz de cometer e permitir atrocidades com aqueles que
não se enquadravam no perfil de alguém que pudesse dar continuidade a uma
linhagem perfeita, assim idealizada por ele. Pertencente ao grupo dos excluídos
estavam judeus, pessoas com deficiências físicas e mentais, intelectuais,
(judeus ou não); surdos e aqueles que os médicos acreditavam que pudesses
transmitir de forma hereditária alguma “anomalia” que pudesse impedir a raça
ariana de ser perfeita.
As Barbáries da II
Guerra e a Pessoa com Deficiência
Pessoas que tinham tais
características eram exterminadas através de um programa criado pelo nazismo
chamado “Action T4” ou simplesmente T4. O programa na verdade começou antes da
guerra, em 1º de setembro de 1939. Dados históricos informam que no início, os
médicos e enfermeiros foram “encorajados” a negligenciar os pacientes
classificados como incuráveis, assim muitos deles morreram de fome ou por
outras doenças e infecções. Mais tarde, grupos de consultores do governo iam
aos hospitais e decidiam quem viveria e quem deveria passar pela “solução
final”, expressão usada para designar morte. Os selecionados eram encaminhados
a vários centros de extermínio do programa “T4 – eutanásia” e executados com
injeções letais.
Em julho de 1933 Hitler assinou a “Lei para Prevenção de descentes
hereditariamente doentes”, a fim de implementar suas políticas de higienização
racial. A lei falava em esterilização compulsória às pessoas que eles chamavam
de “doentes”, em que creditavam ser portadores de doenças hereditárias como
a esquizofrenia, a epilepsia, e "imbecilidade". A esterilização também foi sugerida
para outras formas de desvio social, além da surdez e cegueira. Pessoas com
nanismo, gêmeos e pessoas com deficiência físicas que chamassem a atenção
dos médicos eram selecionados para experiências genéticas e morriam em
consequência da brutalidade dos testes de laboratório.
Josef Mengele Formado em medicina, condecorado por bravura militar.
Em 1943, foi para o campo de concentração de Auschwitz como coronel-médico da
tropa de elite nazista. Mandou executar milhares de prisioneiros, entre judeus,
idosos e pessoas com deficiência física. Os que não eram executados
imediatamente eram conduzidos para ficar como cobaias humanas de seus
experimentos.
A Pessoa com deficiência no Brasil
A história do Brasil
sempre foi transmitida aos brasileiros, como uma espécie de Conto de Fadas ou
algo semelhante. Em que seus personagens são tidos como verdadeiros mártires,
heróis, com quadros que relatam sua história de uma maneira tão gloriosa e
perfeita que compete aos historiadores a grande e difícil tarefa de, através
dos tempos, desvendarem os verdadeiros mistérios que norteiam a história de
nosso país. Quanto mais aos relatos
escritos, dados concretos referentes às pessoas com deficiências no início de
nossa trajetória. Não é possível falar da história do Brasil sem mencionar os
índios, habitantes naturais desta terra, de seus hábitos, costumes e cultura.
Historiadores e
antropólogos através de seus estudos observaram que cada tribo indígena possuía
sua crença e seus rituais religiosos, mas todos acreditavam no poder da
natureza, sua influência em suas vidas no cotidiano. Esses historiadores
descobriram ainda certas peculiaridades das tribos indígenas brasileiras, onde
algumas delas adotavam certos comportamentos quando nascia alguma criança com
algum tipo de deformidade, conforme descrito por Figueira[1] (2008):
“Em muitos relatos de historiadores e
antropólogos, estão registradas várias práticas de exclusão entre os índios.
Quando nascia uma criança com deformidades físicas era imediatamente rejeitada,
acreditando-se que traria alguma maldição para a tribo, ou coisas dessa
natureza. Uma das formas de se livrar delas era abandonar os recém-nascidos nas
matas, ou atirá-las de montanhas e, nas mais radicais atitudes, até
sacrificá-las em chamados rituais de purificação.”
Além de acreditarem que tal criança
poderia trazer algum tipo de maldição à tribo, havia ainda a argumentação, de
que a pessoa com alguma deficiência sofreria muito ao longo de sua vida, ou
ainda que, aquele sacrifício visava o bem da coletividade.
Avançando na
história, temos conhecimentos que, somente a partir do século XIX, o Brasil
passa dar um pouco de atenção à essas pessoas com deficiências, entretanto,
essa atenção estava voltada primeiramente aos mutilados de guerra. O Brasil,
passou a investir em hospitais – escolas que atendessem e recuperassem tais
pessoas, dando assistência ainda aos operários de fábricas acidentados, foi
criado pelo governo brasileiro o INAR – Instituto Nacional de Reabilitação
através do Decreto 27.083 de 21 de dezembro de 1956, entretanto, por falta de
investimento foi instinto em 1968. Outros institutos e órgãos foram criados
ainda, visando o atendimento às pessoas com deficiência, como o Imperial
Instituto dos Meninos Cegos em 1854, hoje conhecido como Instituto Benjamin
Constant e o Imperial Instituto dos
Surdos-Mudos e 1856, atualmente denominado INES – Instituto Nacional de
Educação de Surdos. A criação destes institutos, entretanto, tinha como
objetivo principal dar assistência de forma paternalista, pois funcionavam como
asilos, uma vez que tais crianças eram abandonadas por suas famílias e não
tinham onde abrigar-se.
No Brasil, as
pessoas tidas como diferentes eram excluídas, e internadas nos asilos que foi
um marco da exclusão social. Após o período conhecido como asilismo, outro tipo
de tratamento dado às pessoas com deficiência, se destacou no país, o
assistencialismo, em que esta parcela da população era reconhecida por suas
necessidades, entretanto, estigmatizada por suas dificuldades e
impossibilidades. Piedade e proteção eram palavras associadas às pessoas com
deficiência.
No Brasil República com o Decreto-lei nº 7.870, de 15 de outubro de
1927, tornou-se obrigatório que crianças com deficiência física e mental
frequentassem escolas do ensino primário para crianças de 7 aos 14 anos, o que
poderia ser estendido até os 16 anos, caso esta não houvesse concluído o ensino
primário até os 14 anos.
No ano de 1975 foi proclamada pela Assembleia Geral da ONU a
“Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes”, e, 1981 foi aprovado como o
Ano Internacional das Pessoas Deficientes. A partir de então, não só a
sociedade em geral passou a perceber e respeitar a pessoa com deficiência, como
principalmente a pessoa com deficiência começou a ter consciência de si própria,
passando então a organizarem-se em grupos, associações etc.
A Inclusão Pessoa com Deficiência e a Moda Inclusiva
Hoje no Brasil temos
a Lei Brasileira de Inclusão que garante às pessoas com deficiência seus
direitos enquanto cidadão, enquanto pessoa, como merecedora de tratamento
digno, igualitário e equitativo. Após 16 anos tramitando no congresso nacional,
o estatuto foi aprovado, nos assegurando diante de uma sociedade excludente e
padronizada pela busca da “perfeição” onde as pessoas são avaliadas pelo
formato de seus corpos e comportamentos ditos normais, onde era impensável uma
pessoa com deficiência ser protagonista de sua própria vida. Vivermos e
fazermos nossas próprias escolhas em qualquer espaço que desejamos estar e/ou
ocupar.
A imagem que se
tinha da pessoa com deficiência era sempre de vítima, de coitadinho, de quem
sempre necessitava de cuidados ou assistência. Não se pensava por exemplo, no
caso de cadeirantes, poderia ter seu próprio estilo de se vestir, se arrumar.
Sua cadeira de rodas, bastava ser funcional, pois, o que importava era a
locomoção, a cadeira, poderia ser comparada até a um uniforme, todas iguais, em
medidas, tamanhos. Não se tinha a ideia da cadeira de rodas, como parte
integrante, como uma extensão do corpo do cadeirante. Era considerado um objeto
de locomoção. Mas você pode estar pensando, o que uma cadeira de rodas tem a
ver com moda inclusiva? Tem tudo, hoje em dia, o cadeirante pode comprar sua
cadeira conforme seu gosto, seu estilo, pode mandar personalizar, colorir, e o
mais importante, ser comprada com medidas da cadeira, que lhe tragam maior
segurança e autonomia. E o aspecto, o visual da cadeira também é uma quebra de
paradigmas, onde o cadeirante deixa de chamar a atenção por sua deficiência,
mas por sua forma de vestir-se e pelo aspecto, modelo, visual de sua cadeira.
Eu, como cadeirante, pude levar para minhas cadeiras um pouco da minha
personalidade, uma é vermelha com as calotas dos vingadores (meu lado nerd) e a
outra personalizada com rosas e pintada com minha cor preferida o lilás. Tomar
esta decisão quanto as minhas cadeiras, foi importante, pois como uma pessoa
que há mais de 16 anos trabalha pela inclusão da pessoa com deficiência na
sociedade, trouxe para perto de mim pessoas, com olhares diferenciados, não
mais com pena, mais de curiosidade, de querer saber mais sobre a cadeira
“diferente” e consequentemente eu pude assim, falar sobre minhas experiências
de vida, meus gostos, meu trabalho, falar sobre o universo que é a pessoa com
deficiência.
Tive através de
muito trabalho, ultrapassando diversas barreiras adquirir cadeiras de rodas de
acordo com meu estilo e atendendo minhas necessidades. Mas infelizmente, este
equipamento, tem um custo muito alto, e quanto melhor for o material, quanto
mais personalizada, individualizada, maior o seu custo, e infelizmente, a realidade
de poder aquisitivo, de estar no mercado de trabalho formal, ainda é crítico
para a maioria das PCDs no Brasil. De acordo com o último Censo do IBGE de
2020, O rendimento médio real habitualmente recebido pelas pessoas ocupadas com
deficiência foi de R$1.860,00 enquanto o rendimento das pessoas ocupadas sem
deficiência era de R$ 2.690,00. Ainda de acordo com a pesquisa, Cerca de 55,0%
das pessoas com deficiência que trabalhavam estavam na informalidade, enquanto
para as pessoas ocupadas sem deficiência esse percentual foi de 38,7%. Tais
dados, mostram que muitas pessoas com deficiência continuam a margem da
sociedade, vivendo como podem e não como merecem, com dignidade.
Além da cadeira de rodas que acabava por definir a pessoa com
deficiência, como um ser inferior e digno da piedade de todos, fazia e ainda
pode fazer com que, muitas PCDs sofram com problemas de baixa autoestima, pois,
soma-se a este princípio as roupas, feitas padronizadas, e muitas vezes
desconfortáveis, não atendendo as necessidades das PCDs, dependendo das
sequelas, mobilidade e autonomia desta pessoa. Uma vez que, cada pessoa com
deficiência tem suas particularidades e diferentes necessidades.
Ter a possibilidade de escolher uma roupa que além de ser útil,
prática, atenda seu estilo, ajuda a elevar a autoestima do cadeirante ou da
pessoa que seu corpo não corresponda aos padrões normatizados pela sociedade.
No Brasil, o conceito de moda inclusiva, ou mesmo o conhecimento de sua
existência, podemos afirmar que está iniciando ainda, todavia, já existem marcas
que produzem roupas para esta parcela da população, pois, conseguiram enxergar
que além da necessidade, este público também é consumidor, ajuda a roda da
economia a girar e principalmente, é cidadão integrante de uma sociedade como
qualquer outra pessoa.
Tais empresas conseguiram com sua iniciativa, não apenas alcançar
esta parcela da população, como ainda melhorar a imagem de sua marca, atraindo
outros consumidores não PCDs. Pois, estima-se que a população em geral, tende a
comprar produtos de marcas engajadas em projetos sociais, inclusão das minorias
etc., o que consequentemente faz seus lucros aumentarem. No Brasil, podemos
citar marcas como, A Reserva, por exemplo, que criou sua linha, a Adapt&. Que
se uniram a Equal, marca pioneira no desenvolvimento de roupas inclusivas”,
AR&Co, grupo que controla a grife, afirma o CEO, que são catorze modelos
com aparência, modelagem e qualidade idênticas às dos produtos mais vendidos,
porém com ajustes ergonômicos.
E qual diferencial das roupas da moda inclusiva e as demais peças
consumidas pela sociedade? Tais peças do vestuário trazem modificações
funcionais como fechos magnéticos e de velcro, costuras e zíperes laterais com
abertura facilitada, mangas e punhos personalizáveis, elásticos na cintura e
caimentos próprios para cadeirantes e usuários de próteses. O mercado da moda
inclusiva é tão lucrativo, que de acordo com matéria publicada na revista VEJA[2], segundo a grife
mencionada, pessoas com deficiência, comumente definidas pela sigla PCD, formam
um público que gasta 4,8 vezes mais do que um cliente médio no e-commerce.
Todo este caminho percorrido até o momento, nos mostra que a
inclusão deve ocorrer em todos os espaços, em todas as áreas que envolvam a
vida da pessoa com deficiência. Citando mais uma vez, dados do Censo IBGE 2020,
no Brasil, somos cerca de 18 milhões de brasileiros com algum tipo de
deficiência, pessoas que buscam seu lugar, seu protagonismo e para que isto
aconteça, ela deve ter acesso e oportunidade de fazer suas próprias escolhas,
sempre respeitando sua personalidade, seu estilo de vida e modo de se vestir,
tendo suas necessidades atendidas.
É importante destacar ainda que a moda inclusiva com suas peças e
suas modificações funcionais, traz também segurança ao cadeirante, pois, é
imperioso, enfatizar que nem todos os lugares possuem banheiros acessíveis que
atendam realmente as normas da ABNT no que diz respeito à acessibilidade. São
locais muitas vezes, somente com uma metragem maior, porém com barras de apoio
mal posicionadas que deixa o cadeirante em risco de queda, no momento da
transferência de sua cadeira para o vaso sanitário e vice-versa, e isso é um
agravante quando sua roupa não é adequada às suas necessidades, então a pessoa
tem maior dificuldade ao se despir, e assim o risco de queda e ainda a sujar
sua roupa.
Além do que já foi exposto no texto, é relevante mencionar ainda
que apesar de incipiente no Brasil, as empresas que estão investindo na moda
inclusiva, trazem á tona a discussão sobre o capacitismo, este preconceito
social contra a pessoa com deficiência, que a julga como incapaz de realizar
suas atividades e tarefas, de ter sua autonomia e vida de qualidade. Este
capacitismo estrutural que impede as pessoas com deficiência de usufruir do
pleno gozo de participar de qualquer espaço, seja pela falta de acessibilidade
em todos os seus aspectos. A moda inclusiva além de funcional, ela ajuda as
PCDs a saírem de um ostracismo ao protagonismo de suas próprias histórias. É
ainda, como dito no início desta matéria, um direito garantido por lei. Cito,
como exemplo, o Art. 4º, capítulo II, da LBI[3] onde afirma que “Toda
pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais
pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.”
Percebendo a inclusão como uma atitude que envolve acesso à
educação, à diversão, à arte, ao mercado de trabalho e para este último, a
aparência é sim, um fator de impacto na contratação, principalmente às pessoas
com deficiências, que além de terem sua capacidade de trabalho questionada, seu
aspecto, suas roupas também poderão enternecer na decisão do contratante, do
empregador.
Então, falar de moda inclusiva é falar sobre inclusão em todos os
aspectos, principalmente aqueles que a população sem deficiência, ainda não tem
um olhar mais sensível. É mostrar que a pessoa com deficiência é antes de mais
nada uma pessoa, que como qualquer outra tem suas especificidades, suas
complexidades, gostos e estilo. Existe uma frase atribuída à Verna Myers[4] que diz “Diversidade é
convidar para a festa; inclusão é chamar pra dançar.”, então como ir ao baile e
mais ainda, como dançar sem roupas apropriadas.
Fontes:
FIGUEIRA, Emílio. Caminhando em Silêncio. Editora GIZ, 2ª edição, 2009.
https://super.abril.com.br/historia/o-medico-josef-mengele-anjo-da-morte/
https://www.dw.com/pt-br/1939-programa-nazista-de-exterm%C3%ADnio/a-319271
https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/the-murder-of-the-handicapped
https://nada.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/0a9afaed04d79830f73a16136dba23b9.pdf
[1] Caminhando em Silêncio. Editora GIZ, página 22
[2] Revista Veja versão digital de 14 de agosto de 2022.
[3] Lei Brasileira de Inclusão - LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015.
[4] VP de estratégia de Inclusão da Netflix